segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

As inspirações reais do filme 'Babilônia, de John Gilbert à Clara Bow

 


Dirigido por Damien Chazelle, 'Babilônia' (Babylon, 2022) tem como proposta misturar a magia do cinema e os bastidores dos filmes mudos, contrapondo-se com a atmosfera caótica e selvagem de uma década que, não à toa, ficou conhecida como os loucos anos 20. Estrelado por Margot Robbie e Brad Pitt, o longa tem um enredo fictício e propositalmente exagerado, inspirado pelos escândalos do polêmico livro 'Hollywood Babylon', de Kenneth Anger. Dentre as muitas referências no roteiro, destacam-se duas: Clara Bow e John Gilbert.


Um pouco sobre o filme


O filme começa com uma festa que faz com que as infâmes reuniões de 'O Grande Gatsby' pareçam apenas uma recreação infantil. Regada a álcool e drogas, intercalando um elefante, orgias, e um óbito, a noite nos apresenta os personagens principais que acompanharemos. Jack Conrad (Brad Pitt) é o maior astro da MGM, apesar de seu alcoolismo e seus inúmeros e efêmeros casamentos; Nellie LaRoy (Margot Robbie) aspirante à estrela, é viciada em aventuras e cocaína; Manny Torres (Diego Calva) é um jovem mexicano que sonha em ser produtor de cinema; Já Sidney Palmer (Jovan Adepo) é um saxofonista negro que tenta sobreviver de sua música. Arduamente perseguindo o sucesso, cada um à sua maneira vai provando as glórias do estrelado e descobrindo que o topo não é tão reluzente quanto parecia ser.

Clara Bow e Nellie LaRoy


Embora seja uma personagem fictícia e tenha também elementos baseados em outras estrelas da época, foi amplamente divulgado que Clara Bow foi a principal inspiração para a criação de Nellie. Conhecida como 'It Girl' (a garota com um 'algo' a mais), Clara Bow se tornou uma das atrizes mais populates de sua época, graças a uma mistura de carisma, sensualidade e autenticidade. Seu talento nato e sua desenvolura na frente das câmeras presenteavam o público com o frescor característico das melindrosas, evocando liberdade e ausência de preocupações.

Todavia, por baixo do glamour de uma estrela em ascenção, estava uma jovem que sofrera abusos e privações durante a infância e a adolescência. Havia a insegurança com seu modo de falar e de agir, provenientes da escassez de seus primeiros anos de vida, em um cortiço no Brooklyn. Existia também o vazio e o medo, deixados pela mãe, que fora internada em uma clínica psiquiátrica, e por seu pai alcóolatra. Para esquecer suas dores, uma persona festeira e divertida foi criada. Suas cicatrizes eram reabertas sempre que necessário, para criar lágrimas em profusão toda vez que uma cena exigia tristeza. Ao contrário de muitas de suas contemporâneas, Clara fazia questão de demonstrar seu espírito livre e sua espontaneidade publicamente. Romances com astros como Gilbert Roland e Gary Cooper ou com o diretor Victor Fleming faziam a alegria dos tablóides. Mas em algum momento as coisas desandaram e as fofocas sobre sua vida saíram de controle. Sua popularidade continuava em alta, mas sua fama como promíscua e vulgar estampavam jornais e revistas. Seus modos pouco elitizados fizeram com que fosse vista por muitos com desaprovação, incluindo algumas de suas colegas de profissão. 

Nellie LaRoy é uma personagem bem mais exagerada, quase uma versão de Clara feita pelos tablóides. No entanto, a infância pobre e infeliz, a doença da mãe e até mesmo a facilidade para chorar estão ali. Assim como Clara, Nellie também enfrenta uma popularidade ambígua, onde encontra sucesso de público mas também o julgamento da sociedade. Descrita como 'selvagem', ela encontra neste adjetivo o preço para sua fama e para sua queda. Se no começo, seus modos autênticos e audaciosos conquistaram admiração, o excesso de vícios e escândalos causam descrença e repúdio. Com a chegada do cinema falado, Nellie vê sua carreira chegar ao fim tão meteoricamente quanto chegou ao topo. Ao contrário do filme, Clara Bow fez uma excelente transição para o cinema falado. Ela deixou Hollywood em 1933 por escolha própria, aposentando-se da vida pública após desgastes emocionais, preferindo viver discretamente ao lado do marido Rex Bell, com quem teve dois filhos. 

John Gilbert e Jack Conrad


Jack Conrad já inicia o longa como um astro consolidado do cinema mudo. Maior estrela da MGM, admirado pelos colegas e amigo de Irving Thalberg, ele troca de esposa com a mesma frequência com que envazia garrafas de bebida. A chegada do som ao cinema inicialmente o deixa animado, apesar de suas experiências de filmagem se provam mais difíceis do que o esperado. É através de uma capa de revista que Jack descobre que sua carreira chegou ao fim. Ao ler as críticas destruidoras da colunista que o arrancou de seu reinado nas telas, ele confronta a dura realidade da decadência de um ídolo. As risadas do público nos cinemas assistindo sua atuação só confirmam a finitude de seus dias de glória.

A trajetória de John Gilbert se assemelha bastante a de Conrad. Tendo seu auge no cinema mudo, onde fez par dentro e fora das telas com Greta Garbo, o ator teve um revés em sua carreira com a chegada do som. Por muito tempo, o boato de que a voz de Gilbert era estridente ou pouco adequada prevaleceu. Mas essa versão passou a ser considerada um boato, já que gravações mostram que a voz do astro era perfeitamente normal. Ninguém sabe ao certo qual foi o motivo, mas as risadas da platéia realmente aconteceram. Há teorias que afirmam que o próprio Louis B. Mayer, chefe de estúdio da MGM, foi o responsável, ordenando que a voz de Gilbert fosse alterada na exibição. É fato que Mayer era um tirano e que não se dava bem com o ator, mas não existe nenhuma prova concreta de que a sabotagem tenha ocorrido. A versão mais plausível é que o cenário e as falas mal escritas do filme, onde o protagonista repetia 'I love you' várias vezes em uma das cenas, foi o real motivo para as gargalhadas do público, que achou cômico e piegas todo o contexto. Apesar de ter estrelado outros filmes posteriormente, sua confiança para atuar havia diminuido consideravelmente com as críticas e ele aumentou cada vez mais o consumo de álcool para superar seus problemas. Conforme o alcoolismo foi ficando mais presente, piores eram os papéis que lhe ofereciam. Seu último trabalho foi em 'O Capitão Que Odeia o Mar' (The Captain Hates the Sea, 1934).

Outras referências


O musical 'Cantando na Chuva' (Singin' in the Rain, 1952), que aborda também a transição do cinema mudo para o sonoro e parodia o caso de John Gilbert, é uma referência direta no longa, sendo inclusive exibido na última cena. O filme 'The Hollywood Revue of 1929' (1929), onde originalmente a canção 'Singin' In The Rain' é ouvida nas telas, também é explicitamente referenciado. 

O lendário produtor Irving Thalberg não só é mencionado como é um personagem, sendo interpretado por Max Minghella. 

Logo no início, ainda na festa, temos uma clara inspiração no escândalo do ator Fatty Arbuckle, acusado de estuprar a aspirante a atriz Virginia Rappe, que morreu alguns dias depois, por ruptura na bexiga e peritonite. Os fatos ocorridos na fatídica noite são desconhecidos até os dias de hoje. Arbuckle foi absolvido pelo juri por falta de provas que o incriminassem, mas sua carreira foi permanentemente detruída. 

A personagem Lady Fay Zhu (Li Jun Li) é vagamente inspirada na atriz Anna May Wong. Particularmente, achei que por sua importância e pioneirismo como asiática em Hollywood, poderia ter sido concedida uma personagem de maior destaque e profundidade, abordando mais a falta de oportunidades que ela teve. 

Ruth Adler (Olivia Hamilton), diretora do filme em que Nellie atua, é inspirada da diretora Dorothy Arzner. A cineasta trabalhou com Clara Bow em filmes como 'Segura o Que é Teu' (Get Your Man, 1927) e 'Garotas na Farra' (The Wild Party, 1929).

Spoiler 

A partir deste ponto, estarão informações sobre o final dos prsonagens principais.

Tanto Nellie quanto Jack tem finais trágicos. Embora baseado em John Gilbert, Jack Conrad comete suicídio, enquanto Gilbert morreu em consequência do alcoolismo. Uma possível inspiração para a cena, onde Conrad está em uma festa, vai para o quarto e atira em si mesmo, pode ter vindo do ator George Reeves. Apesar de existir alguma polêmica sobre o caso, a versão oficial da polícia constatou que foi o próprio ator o responsável pelo tiro que lhe tirou a vida. Em seu apartamento, na presença de alguns amigos em uma festa improvisada, Reeves se retirou para o quarto e minutos depois um tiro foi ouvido pelos convidados. O motivo teria sido o declínio em sua carreira após o final da série 'Superman', na qual atuou durante a maior parte da década de 50.

Já Nellie LaRoy tem apenas uma nota de jornal que informa sobre sua morte precoce, tendo sido encontrada em seu apartamento em Hollywood. O final da personagem pode ter sido inspirado na atriz Alma Rubens, cujo vício em cocaína acabou por destruir sua carreira. Chegando a ser internada diversas vezes pelo consumo da droga, a atriz faleceu em 1931, aos 33 anos. Com o corpo já debilitado, ela contraiu pneumonia, ficando inconsciente por cerca de três dias, sem jamais ter acordado novamente.

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