quinta-feira, 19 de agosto de 2021

E a Mulher Criou Hollywood (Et la Femme Créa Hollywood, 2016)


É comum associarmos a presença feminina no cinema apenas às atrizes, afinal a esmagadora maioria de diretores, produtores, roteiristas e todas as demais funções de prestígio que envolvem esta indústria é constituída por homens. Quando Kathryn Bigelow venceu o Oscar de Melhor Direção em 2010 tornou-se a primeira mulher a receber a estatueta na categoria, em uma premiação que existe desde 1927, então na 82° edição.

Kathryn Bigelow com seu Oscar


Curiosamente, ao contrário do que podemos pensar, as mulheres não começaram a se interessar por tarefas atrás das câmeras apenas nas últimas décadas. O próprio cinema ficcional, com roteiro e encenação, fora inventado por uma figura do sexo feminino, a francesa Alice Guy Blaché. Na era do cinema mudo, especialmente durante as primeiras duas décadas do século XX, as mulheres dominavam a sétima arte, desempenhando as mais diversas funções, desde as mais simples até as mais complexas. Então por que não aprendemos sobre elas e nem conhecemos seus nomes? Por que não houve uma queda tão brusca do número de mulheres nas produções cinematográficas? 


Simples! No começo, o cinema era experimental, considerado sem futuro, um mundo onde apenas mulheres e judeus se arriscavam, já que não tinham facilidade para conseguirem outros empregos. Com poucos recursos e em uma área pouco valorizada, o trabalho feminino era árduo mas extremamente prolífico. Aos poucos, percebeu-se o potencial do cinema como uma verdadeira fábrica de dinheiro que atraía cada vez mais o público. E ao tornar-se lucrativo, tornou-se também o alvo dos homens. Com a fundação dos grandes estúdios, Hollywood tornou-se uma indústria de fato, dominada principalmente por judeus, como Adolph Zukor (da Paramount), Louis B. Mayer (da MGM), Carl Laemmle (da Universal), Jack e Samuel Warner (da Warner Bros.), William Fox (da 20th Century-Fox) e Harry Cohn (da Columbia Pictures). Com cada vez menos oportunidades, a participação feminina foi se tornando cada vez mais escassa.


Dirigido e produzido por Julia Kuperberg e Clara Kuperberg, o documentário 'E a Mulher Criou Hollywood' ((Et la Femme Créa Hollywood, 2016), fazendo um jogo de palavras com o filme 'E Deus Criou a Mulher' (Et Dieu... créa la femme, 1956), traz à tona quase que uma denúncia à forma como mulheres como Alice Guy Blaché, Dorothy Arzner ou Lois Weber são não apenas esquecidas como completamente ignorada por teóricos da sétima arte, tirando finalmente das sombras algumas das figuras mais importantes do cinema. 


Algumas das mulheres citadas no documentário:


Alice Guy Blaché (Saint-Mandé, França, 1 de julho de 1873 - Wayne, EUA, 24 de março de 1968)


Se os irmãos Lumière são os pais da sétima arte, é a Alice Guy Blaché a quem devemos a magia do cinema, como o conhecemos hoje. Auguste e Louis Lumière inventaram o cinematógrafo, reproduzindo pequenos vídeos de cenas cotidianas da época e promovendo a venda do aparelho de maneira mais científica. Alice, presente em uma das exibições dos dois, trabalhava como secretária de Léon Gaumont, que deu seu aval para que a jovem fizesse suas próprias produções em seu tempo livre. Diferente de seus contemporâneos, ela acreditava que a invenção deveria ser usada também para contar histórias e, em 1896, filmou seu primeiro curta 'A Fada do Repolho' (La Fée aux choux), que viria a ser o primeiro filme ficcional da história, tornando-a automaticamente, a primeira cineasta e roteirista do cinema, antes mesmo de Georges Méliès. Durante 20 anos de carreira, chegou a dirigir mais de mil filmes. 

Lois Weber (Allegheny, EUA, 13 de junho de 1879 - Hollywood, EUA, 13 de novembro de 1939)


Roteirista, produtora, diretora e atriz, Lois Weber foi uma das mais importantes cineastas da era do cinema mudo, chegando a ser a mais bem paga, dentre homens e mulheres. Foi uma das pioneiras do uso do 'split screen', divisão da tela mostrando duas cenas ao mesmo tempo. Exemplos bem famosos de clássicos (de outros diretores) que usaram a técnica são os filmes 'Indiscreta' (Indiscreet, 1958) e 'Confidências à Meia-Noite' (Pillow Talk, 1959). Weber também destacou-se ao abordar temas ousados, como aborto e prostituição, além da primeira cena de nu frontal feminino do cinema em 'Hypocrites' (1915). *Nos links há fotos exemplificando a técnica


Anita Loos (Sisson, EUA, 26 de abril de 1889 – Nova Iorque, EUA, 18 de agosto de 1981)


Anita Loos foi oficialmente a primeira roteirista mulher em Hollywood, ao ser contratada por DW Griffith em 1912. Sua parceria com o astro Douglas Fairbanks, para quem escreveu diversos filmes, aumentou consideravelmente sua popularidade na época. Mas foi com as histórias em quadrinho com as aventuras de Lorelei Lee e Dorothy Shaw em ' Os Homens Preferem as Loiras' (Gentlemen Prefer Blondes), lançado em 1925, que atingiu o auge de sua carreira e sua independência financeira. O enredo foi adaptado para as telas em 1928, com Ruth Taylor e Alice White, e em 1953, com Marilyn Monroe e Jane Russell, em sua versão mais famosa. Alguns de seus trabalhos mais importantes no cinema incluem 'Intolerância' (Intolerance, 1916), 'A Mulher Parisiense dos Cabelos de Fogo (Red-Headed Woman, 1932) e 'As Mulheres' (The Women, 1939). Loos também adaptou a icônica obra de Colette, 'Gigi' (1945), para os palcos em 1951, tendo a iniciante Audrey Hepburn como estrela na Broadway.

Mabel Normand (New Brighton, EUA, 9 de novembro de 1892 - Monróvia, EUA - 23 de fevereiro de 1930)


Uma das grandes estrelas de sua época, destacou-se como comediante, atuando ao lado de Roscoe "Fatty" Arbuckle e Charlie Chaplin em diversos filmes. Embora no longa biográfico de Chaplin, de 1992, onde é interpretada por Marisa Tomei, seja retratada como uma atriz egocêntrica e sem talento, é um consenso sua importância no início da carreira do ator e cineasta como uma espécie de mentora, além de interceder a seu favor junto ao diretor e produtor Mack Sennett. Além de atuar, era diretora, roteirista e produtora, chegando a dirigir muitos de seus próprios filmes e ter seu próprio estúdio, embora este sem muito sucesso. 

Dorothy Arzner (São Francisco, EUA, 3 de janeiro de 1897 - La Quinta, EUA - 1 de outubro de 1979)


Com a carreira iniciada na era do cinema mudo, Dorothy Arzner foi a única diretora do sexo feminino durante a década de 30. Contratada pela Paramount, trabalhou como estenógrafa e roteirista, logo sendo promovida a editora, dominando a função em apenas seis meses e arrancando elogios logo em sua estreia, no clássico com Rodolfo Valentino 'Sangue e Areia' (Blood and Sand, 1922). Após uma série de filmes para o estúdio, ela ameaçou ir para a rival Columbia Pictures caso não pudesse passar a também dirigir seus próximos trabalhos. A Paramount acabou concordando e em 1927 ela inaugurou a função em grande estilo, no sucesso de público 'A Mulher e a Moda' (Fashions for Women). Com a chegada do som, dirigiu a estrela Clara Bow em seu primeiro longa falado 'Garotas na Farra' (The Wild Party, 1929), inventando, com uma pequena gambiarra, uma forma da atriz circular livremente pelo estúdio, pendurando um microfone em uma linha de pesca. Apesar de ser creditada pela invenção, posteriormente aperfeiçoada, como não patenteou sua criação, o aparato acabou sendo registrado por um dos engenheiros da Fox. Primeira mulher a dirigir um filme falado e a integrar o sindicato 'Directors Guild of America', Arzner foi a responsável por lançar a carreira de grandes atrizes como Katharine Hepburn, Sylvia Sidney, Rosalind Russell e Lucille Ball. Alguns de seus principais trabalhos são 'Assim Amam as Mulheres' (Christopher Strong, 1933), 'Felicidade de Mentira' (The Bride Wore Red, 1937) e 'A Vida é uma Dança' (Dance, Girl, Dance, 1940.

Frances Marion (São Francisco, EUA, 18 de novembro de 1888 - 12 de maio de 1973, Los Angeles, EUA)


Frances Marion começou a carreira como assistente de Lois Weber, logo se estabelecendo como uma das roteiristas mais aclamadas de seu tempo, sendo a primeira vencedora de duas estatuetas na categoria, pelos filmes 'Lírio do Lodo' (Min and Bill, 1930) e 'O Campeão' (The Champ, 1931). Amiga pessoal da maior estrela do cinema mudo, Mary Pickford, chegou a ser contratada como escritora exclusiva de seus filmes. As duas trabalharam juntas em alguns dos maiores sucessos da atriz como 'A Princesinha' (The Little Princess, 1917), 'The Poor Little Rich Girl' (1917) e 'Pollyanna' (1920), dentre outros. Durante a Primeira Guerra Mundial, chegou a trabalhar como jornalista, documentando os esforços de guerra femininos na linha de frente das batalhas e sendo a primeira mulher a cruzar o Reno após o armistício. Com mais de 180 créditos como roteirista, alguns de seus principais trabalhos incluem 'A Letra Escarlate (The Scarlet Letter, 1926), 'Anna Christie' (1930) e 'Jantar às Oito' (Dinner at Eight, 1933).

Mary Pickford (Toronto, Canadá, 8 de abril de 1892 - Santa Mônica, EUA, 29 de maio de 1979)


Para além de sua imagem frágil e até infantilizada, Mary Pickford foi uma das mulheres mais poderosas das décadas de 1910 e 1920, além de ser a maior estrela da era do cinema mudo. Cofundadora do estúdio United Artists Corporation, juntamente com D. W. Griffith , Charlie Chaplin e Douglas Fairbanks, foi também um dos 36 fundadores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Vencedora do Oscar por sua atuação em 'Coquete' (Coquette, 1929), a atriz, que atuou em mais de 50 filmes ao longo de sua carreira, fez questão de tornar-se sua própria produtora, supervisionando todos os aspectos que envolviam seus trabalhos. Além de feminista, Pickford fazia questão de usar sua fama para apoiar uma série de causas, fazendo discursos para arrecadar fundos para os esforços durante a Primeira Guerra, com a venda dos 'Liberty Bonds', títulos vendidos nos EUA, chegando a falar para 50 mil pessoas. Também fundou o Hollywood Studio Club, um dormitório para mulheres que trabalhavam no cinema e o Motion Picture & Television Fund, um fundo de caridade para ajudar atores que estivessem passando por necessidades, com auxílio financeiro e moradias provisórias.

Ida Lupino (Londres, Inglaterra, 4 de fevereiro de 1918 - Los Angeles, EUA, 3 de agosto de 1995)


Ida Lupino começou sua carreira como atriz, ainda na Inglaterra, indo para Hollywood no final da década de 30. Em 1940, destacou-se como femme fatale no noir 'Dentro da Noite' (They Drive by Night), que lhe rendeu um contrato com a Warner, onde frequentemente ficava com papéis que haviam sido recusados por Bette Davis. Durante seu tempo no estúdio, a atriz estava sempre em atrito com Jack Warner. Exigindo trabalhos de qualidade e recusando muitos filmes que lhe eram oferecidos, ela foi punida diversas vezes com suspenções. Durante o período de ócio, passou a se interessar pelas funções por detrás das câmeras. Junto com o marido Collier Young, fundou a produtora independente The Filmakers Inc., em 1948. Seu primeiro trabalho na direção foi em 'Mãe Solteira' (Not Wanted, 1949), substituindo Elmer Clifton, que havia sofrido um ataque cardíaco. Em respeito ao colega, optou por não ser creditada. Além de continuar trabalhando como atriz para conseguir dinheiro para seus filmes, ela tornou-se diretora, produtora e roteirista, abordando temas polêmicos como estupro e gravidez fora do casamento. Algumas de suas produções mais aclamadas como cineasta são 'O Mundo Era o Culpado' (Outrage, 1950), 'O Bígamo' (The Bigamist, 1953) e 'O Mundo Odeia-me' (The Hitch-Hiker, 1953), tornando-se a primeira mulher a dirigir um noir. Durante a década de 60, dedicou-se aos programas de televisão, dirigindo episódios de séries como 'Alfred Hitchcock Presents', 'The Twilight Zone' , 'Os Intocáveis' (The Untouchables), 'O Fugitivo' (The Fugitive) e 'A Feiticeira' (Bewitched). Ao todo, dirigiu 8 longas e mais de 100 episódios de televisão.

O documentário está disponível na íntegra e legendado no YouTube: Clique aqui

Para quem se interessar, deixo aqui também duas coleções em dvd:

As Pioneiras do Cinema: Clique aqui;
A Arte de Ida Lupino: Clique aqui

2 comentários:

  1. Que mulheres extraordinárias e talentosas! Vamos torcer para que mais mulheres sejam reconhecidas e premiadas. Parabéns pelo Blog!

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    1. Da até uma certa dor no coração ver que poucas pessoas conhecem o trabalho delas, mas vamos torcer para que as mulheres possam cada vez mais estar na história do cinema! Muito obrigada! <3

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