domingo, 15 de agosto de 2021

O Beijo no Asfalto (1980), um clássico nacional baseado na peça de Nelson Rodrigues

 

Obsceno. Vulgar. Sujo. Pornográfico. Estes eram alguns adjetivos que costumavam permear as opiniões acerca de Nelson Rodrigues durante toda a sua carreira. Conhecido por expor as mais degradantes facetas do ser humano, trazendo à luz toda a podridão que a hipócrita sociedade brasileira tanto se envergonhava e se envergonha até hoje, o dramaturgo que levou o teatro do país a outro patamar conseguia a proeza de ser odiado de norte a sul. Desprezado pela esquerda por sua posição política, sendo assumidamente reacionário, muito menos tinha o apoio da direita conservadora, que se escandalizava com o teor de suas obras. Apesar de críticas avassaladoras, no entanto, o sucesso não lhe escapou, conseguindo consagrar-se como jornalista e escritor, nas mais variadas narrativas, de romances à crônicas sobre futebol. 

Nelson Rodrigues

Já consagrado, tendo como principais trabalhos a peça 'Vestido de Noiva' (1943) e as crônicas diárias intituladas 'A Vida como Ela é..' (1950 a 1961), escritas para o jornal 'Última Hora', Nelson Rodrigues publicou em 1960 a peça 'O Beijo no Asfalto', que teve sua primeira montagem um ano depois no Teatro dos Sete, com elenco formado por Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Oswaldo Loureiro. O autor, que por anos havia ganhado a vida como jornalista, costumava se inspirar em manchetes de noticiários para dar o ar cotidiano de suas obras. Em uma destas, descrevia-se os últimos momentos do repórter do jornal 'O Globo', Pereira Rego, que após ser atropelado por um ônibus no Largo do Machado, centro do RJ, pedira um beijo de despedida à uma jovem desconhecida que havia se debruçado para socorre-lo. Nas mãos de Nelson Rodrigues, o beijo de misericórdia passa a ser o centro de várias vertentes da hipocrisia e da imoralidade da sociedade brasileira, fazendo parte da série de peças chamada 'Tragédias Cariocas'.

Suely Franco, Fernanda Montenegro e Oswaldo Loureiro na adaptação teatral em 1961

A história teve três adaptações para as telas. A primeira, com o título apenas de 'O Beijo', estreou em 1964, com direção de Flávio Tambellini e com Reginaldo Faria, Norma Blum, Xandó Batista e Jorge Dória no elenco. Mais recentemente, em 2018, sob a direção de Murilo Benício, com Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos, Débora Falabella e Stênio Garcia, foi realizada a terceira e última adaptação até então. Mas falemos da mais famosa das versões, a de 1980, com o icônico beijo entre Ney Latorraca e Tarcísio Meira, que dividem os holofotes com Christiane Torloni, Daniel Filho, Oswaldo Loureiro e Lídia Brondi no clássico do cinema nacional, de Bruno Barreto.

Sobre o filme


Embora Tarcísio Meira seja o primeiro nome nos créditos do longa, é Ney Latorraca quem mais se destaca na produção, interpretando o protagonista Arandir. Logo nas imagens iniciais, vemos a cena de um atropelamento, com a familiar multidão de curiosos em volta da vítima. Este fato simples e cotidiano, que apesar de lamentável acontece com enorme frequência, ganha o interesse de um repórter sensacionalista e de um delegado corrupto, ansioso por desviar as atenções de uma notícia negativa envolvendo seu nome. Em seus últimos suspiros, um jovem ganha um beijo de despedida de uma pessoa que se debruça para acudi-lo. Mas a pessoa em questão não é uma mulher, e sim alguém do sexo masculino. E a sociedade pode perdoar atos mais simples como assassinatos, estupros e corrupção, mas um beijo homossexual em público? Não existe maior aberração e falta de decoro! 
*Obviamente o texto acima contém ironia

Na capa do jornal, Arandir é apontado como amante do homem atropelado e até mesmo acusado de tê-lo assassinado, o empurrando na frente do ônibus. Sem nenhuma prova, apenas com sua sentença estampada no tabloide, a vida e a dignidade do simples bancário são totalmente ignoradas, não só pelos 'vilões', que criaram o rumor, como também pelas pessoas comuns, nós, a sociedade, aqui mostrada como seus vizinhos, seus colegas de trabalho e, até mesmo, sua família. Humilhado no trabalho, perseguido nas ruas e sendo xingado em trotes e pichações, a rotina simples na casa em que vive com a esposa e a cunhada, platonicamente apaixonada por ele, torna-se insustentável, exigindo uma fuga, tal qual um criminoso. 

Embora escrita em 1960, tanto em 1980, exatos 20 anos depois, quanto em 2021, mais de 60 anos depois, o tema continua mais atual do que nunca. Escancarando toda a hipocrisia do falso puritanismo e a facilidade em conseguir algo por meios escusos, temos uma crítica clara à corrupção policial, que aplica a lei apenas aonde lhe convém, ao sensacionalismo da imprensa, que manipula e cria notícias para vender jornais e contribui para cortinas de fumaça para os assuntos efetivamente relevantes, além da óbvia homofobia e da sempre presente sexualidade reprimida, um dos principais assuntos da obra rodriguiana. A jornalista, vivida por Xuxa Lopes em rápida participação, aparece como uma voz sensata em meio ao caos mas logo é sobreposta por opiniões cada vez mais absurdas. O desfecho, que acaba sendo previsível por um lado e surpreendente por outro, encerra de uma forma cíclica a trama repleta de sujeiras. 

Para quem se interessa, o filme está disponível na íntegra no Youtube: Assista aqui

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