domingo, 15 de outubro de 2017

Uma Alma Livre (A Free Soul, 1931)


'Ela não era divorciada mas acreditava que estranhos poderiam se beijar!' 

Esse foi o slogan utilizado pela MGM para promover o filme protagonizado por Norma Shearer e Lionel Barrymore, tendo ainda no elenco Leslie Howard e um jovem Clark Gable, que alguns anos depois se veriam novamente em um triângulo amoroso com outra mulher à frente de seu tempo, no clássico E o Vento Levou (Gone Withe the Wind, 1939).


Como um legítimo pre-code, o filme aborda temas considerados tabus com absoluta naturalidade. O enredo contendo sexo antes do casamento, alcoolismo e assassinato a sangue frio foi obviamente um pesadelo para os censores da época, que tentaram cortar uma das cenas mais insinuantes do longa, onde a personagem de Norma Shearer, deitada em um sofá e com um provocante negligee, pede para que Clark Gable coloque seus braços em torno dela. A MGM fez ouvido de mercador e em 1931 a produção estreou nos cinemas sem nenhum corte, privilégio este que seria extinto apenas alguns anos depois. Em 1934, para o absoluto prejuízo da sétima arte, o severo Código Hays passou a ser de fato implantado, impedindo que os estúdios pudessem levar a diante qualquer tipo de imagem que ferisse o moralismo da sociedade americana.

A cena em questão

O longa se inicia com um diálogo entre o advogado Stephen Ashe, interpretado por Lionel Barrymore, e uma jovem misteriosa que vemos apenas através da sombra que escapa por uma porta aberta. A voz feminina pede para que o homem de meia idade leve até ela sua lingerie, imediatamente fazendo com que o público suponha tratar-se de um casal de amantes. O engano rapidamente é defeito quando Norma Shearer entra em cena e somos apresentados a Jan Ashe, filha de Stephen. Fica claro que 'ambiguidade' inicial tem como objetivo mostrar logo de cara para o espectador que a relação entre os dois não tem a severidade e o conservadorismo dos demais relacionamentos entre pais e filhas em plena década de 30. Stephen e Jan são acima de tudo amigos e compartilham o desprezo pela alta sociedade moralista e preconceituosa da qual naturalmente fazem parte por serem de uma família abastada e tradicional. 


Criada por seu pai para ser uma mulher livre e segura de si, sem pudores ou receios de cometer seus próprios erros, Jan é uma moça que tem tudo aos seus pés. Rica, bonita e espirituosa, ela não acalenta o sonho de se casar, ao contrário das demais jovens de sua idade, e acaba aceitando sem muito entusiasmo a proposta de Dwight Winthrop (Leslie Howard), que é perdidamente apaixonado por ela. Buscando excitação em sua vida perfeita, ela conhece um dos clientes de seu pai, o gangster Ace Wilfong (Clark Gable) e os dois imediatamente se interessam um pelo outro. Encontrando-se em um triângulo amoroso, Jan acaba descartando o certinho Dwight para entregar-se à paixão nos braços de Ace. O romance entre os dois é mantido em sigilo pela jovem enquanto Ace insiste em leva-la para o altar. Mesmo ultrapassando o limite da moral e dos bons costumes do período, onde uma moça que não fosse mais virgem era considerada impura, Jan se mantém à frente de seu tempo, ignorando as convenções e apenas vivendo o momento, sem se preocupar tanto com o futuro de sua relação. 

Se você não viu o filme, pule o próximo parágrafo


Quando Stephen descobre o caso secreto da filha, sua aparente mente aberta trata logo de se fechar, afinal Ace nada mais é do que um bandido, que está envolvido com apostas e assassinatos. Temendo pelo futuro de Jan, ele torna-se severo e enfático, exigindo o fim do relacionamento. Sabendo que o pai vem se destruindo ano após ano por conta de seu vício em bebidas, que cada vez se torna mais forte, ela decide fazer o sacrifício de abdicar de seu amor caso Stephen não coloque mais uma gota de álcool na boca. Como podemos imaginar, o acordo dos dois acaba dando completamente errado e desencadeando diversos acontecimentos trágicos. Stephen não apenas volta a beber como também foge da filha e acaba ficando desaparecido por um período indeterminado. Enquanto isso, Jan volta a procurar seu antigo amante, que não aceita de maneira cordial seu amor desapegado. Após ser jogado fora sem sequer saber o motivo, Ace torna-se agressivo e impõe que sua amada case-se com ele no dia seguinte. Amedrontada e decepcionada com a nova face de seu parceiro, ela percebe que todos os alertas que havia recebido das pessoas à sua volta eram verdadeiros. Seu eterno admirador, Dwight Winthrop entra em cena novamente. Ao presenciar o comportamento agressivo e ameaçador do rival, ele decide que a única alternativa para salvar sua donzela em perigo é matando o gangster. E assim o faz. Após a prisão de Dwight, Jan magicamente se vê apaixonada pelo rapaz e sai desesperada a procura de seu pai, o único advogado que tem a competência para defender o réu confesso. Em um golpe de sorte, ela acaba encontrando Stephen na sarjeta, trazendo-o de volta para sua antiga vida, a tempo de fazer um discurso de defesa emocionado em prol do acusado, de maneira tão visceral que acaba literalmente culminando em sua morte em pleno tribunal.

Fim dos spoilers

Clarence Brown, Leslie Howard, Clark Gable e Norma Shearer vendo a miniatura do cenário

Lionel Barrymore abocanhou o único Oscar de sua carreira pela atuação no filme, em grande parte graças à cena final onde discursa perante o juri. Norma Shearer e o diretor Clarence Brown também receberam indicações, mas perderam respectivamente para Marie Dressler, por O Lírio do Lodo (Min and Bill), e Norman Taurog, por Skippy.

Marie Dressler e Lionel Barrymore na cerimônia do Oscar

O enredo foi baseado na novela homônima escrita pela jornalista Adela Rogers St. Johns, que pensava na atriz Joan Crawford como protagonista. A perda do papel para uma de suas maiores rivais fez Crawford proferir a famosa frase 'Como posso competir com Norma Shearer quando ela dorme com o chefe'. Norma Shearer era conhecida como a Rainha da MGM e era casada com Irving Thalberg, um dos chefões do estúdio, o que lhe garantia alguns privilégios. Em 1953, o filme ganhou uma refilmagem estrelada por Elizabeth Taylor, William Powell e Fernando Lamas, intitulada A Jovem Que Tinha Tudo (The Girl Who Had Everything).

O filme acaba de ser lançado pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, em uma edição dupla juntamente com outro clássico de Norma Shearer, A Divorciada. Para comprar clique no nome da loja de sua preferência: Saraiva - Cultura